Maria
Rogério
Carinhosamente,
Mimim!
Pele
branca, quase algodão.
Olhos
azuis – duas bilas da cor do céu do Ceará em dias de verão, o ano todo.
Cabelos
loirinhos como alfenim do engenho, quase dourado, uns poucos fios.
Altura
acima da mediana brasileira do seu tempo (Porque com os fermentos...).
Corpo
forte.
Saúde
de ferro, equilibrada, sincera.
Atitude
firme, corajosa, trabalhadora.
Não
era alegre nem triste.
Conversadeira
com as suas comadres, não dava confiança para qualquer um.
Gostava
de visitar os parente e os poucos amigos
Maria
Só – Apesar de ter irmãos, irmãs e muitos sobrinhos, vivia só!
Casada,
viúva, só – Não teve filhos nem os adotou. Jamais se casou outra vez. Se ela tinha
amados amantes, não sei, não registro.
Só
trabalhou, colheu, consumiu
Trabalha
para sua sobrevivência.
Não
há a moderna esmola do Governo de um salário mínimo para mulheres acima de 55
anos.
Dos
pais não tenho informações. Não tive curiosidade de perguntar muito de sua
vida. Respeitava o seu silêncio. Tive diversas oportunidades, fui por muitas vezes
sua companheira nas viagens de visitas.
Município:
Cariús – Ceará – Sítio Bravas – Morava nas terras de José Luiz e Cotinha
Segunda
metade do século XIX – 1886!
Além
de plantar sua rocinha de arroz todo ano, fazia pão de ló, vendia cachaça e
fazia rendas de almofada e bilros (Almofada e muitos espinhos de mandacaru, estes
faziam o papel de alfinetes).
Nunca
tive curiosidade de saber dos seus amores. Apesar de ela gostar muito de mim.
Faleceu
aos 95 anos, de velhice, cega, junto à Cotinha, a prima que a acolheu, a
paciência em forma de mulher.
Ninguém
perguntasse a sua idade porque a resposta vinha com a carga da sua educação:
“Sou
do tempo que era falta de educação perguntar a idade dos outros!”
Dizem
que seus ancestrais eram portugueses... Mas não vimos a herança da quinta
geração!
Gostaria de saber escrever um conto,
um romance, uma história que fosse real, mas sem as dores e os dilemas tão
reais. Conheço uma leitora que gosta da fantasia das mitologias, da ficção
fantástica, do era uma vez. Não posso começar com Era uma vez porque em pleno
século XXI tenho outras possibilidades de iniciar uma história. Mas como iniciar
sem Um dia, Naquele tempo, No tempo da minha avó, No século...
Para
não enrolar mais ainda, porque leitor esperto não gosta de ser enrolado. Gosta
de ir direto ao ponto.
Bem,
assim sendo, começo a história dizendo que na segunda metade do século dezenove
nasce uma menina de pele muito branquinha quase cor de algodão, não de neve!
Olhos azuis como duas bilas da cor do Céu do Ceará, pois é lá que ela nasce, em
dias de verão, o que é praticamente o ano inteiro.
Com
chuvas escassas e sol forte. Cabelos loirinhos como alfenim do engenho, quase
dourado, uns poucos fios.
Como
toda criança não sabe o seu futuro e já não era mais tempo de fadas madrinhas
para lhe prever o futuro. E futuro de qualquer criança nesta região não precisa
de fada madrinha para prever o futuro incerto que ela terá.
Cresce
a menina sem o meu olho por perto para ver o que lhe aconteceu. Deixo aos meus
leitores esta lacuna para que exercitem a sua imaginação quanto à adolescência
da menina que se chama Maria.
Apresento a vocês a Maria da minha
história. Brincarei com as palavras como nunca brinquei com a Maria. Maria
cresceu e virou mulher. Altura acima da mediana brasileira nordestina do seu
tempo sem o fermento que hoje consumimos.
Corpo
forte. Saúde de ferro. Atitude firme. Equilibrada, sincera, corajosa.
Trabalhadora. Não
Era
alegre, nem triste. Conversadeira com as suas comadres, não dava confiança para
qualquer um. Gostava de visitar os
parentes e uns poucos amigos.
Maria
só! Apesar de ter irmãos, irmãs e muitos sobrinhos, vivia só.
Casou-se
vivendo apenas seis meses neste novo estado civil. Morre o marido e não lhe
deixa filhos. Ela ficou só. Não teve filhos nem os adotou. Jamais se casou
outra vez. Se ela tinha amados ou amantes como falavam as más línguas porque
língua do povo todos já sabem o que não há, inventam, não sei, não faço
registro. Nunca tive curiosidade para bisbilhotar sobre os seus amores.
Só,
trabalhou em sua roça de milho ou de arroz, plantou, colheu, consumiu. Vendia
cachaça. Vendia pão de ló que ela produzia. Era uma mulher rendeira de muitas
qualidades. Fazia renda também de bilros e almofada e muitos espinhos de
mandacaru, estes fazendo o papel de alfinetes. Trabalha para sua
sobrevivência. Não há a moderna esmolado
Governo de um salário mínimo para mulher da roça acima de 55 anos. Isso é coisa
do final do século XX! Ela é do século XIX!
Tempo em que tudo era muito bom, mata verde onde havia mata e rios vivos.
Águas
limpas e cristalinas no tempo da invernada. Não havia poluição nem sustentabilidade
em seus vocabulários. A terra era
fértil. Aliás, o Nordeste é sempre terra fértil, basta que tenha chuva! Agora
há grandes reservatórios, mas no tempo da Maria de minha história era seca e
muita seca. Vivia no interior mais seco do Ceará. Região do Cariri. Mais
precisamente Região Centro-Sul. É só olhar o Mapa. Lá não havia o Açude do Muquém.
Nada
sei a respeito dos pais de Maria. Dizem que eram portugueses. Ela era prima de
minha mãe. E elas juntas tinham muitas conversas. Elas se diziam prima de uma
Velha muito rica que a chamavam de “Velha Prima”, todo mundo naquele tempo era
primo. O Brasil tinha pouco mais de trezentos anos! Em suas falas sobre a “Velha
Prima” diziam ela trazia ouro escondido na barra da saia. Que ela era poderosa
que chegava a esconder capangas sob seus poderes. Esse tempo era tempo de
coronéis, negos livres, mas capangas! E a “Velha Prima” era uma poderosa
chefona da roça. Não tenho muitas informações dos pais e dos seus ancestrais.
Nunca tive curiosidade de perguntar muito sobre sua vida. Talvez a minha idade
contribuísse, pois, por ser muito jovem, não soube dar valor e pesquisar sobre
as suas origens. Respeitava o seu silêncio. Tive grandes oportunidades, fui por
muitas vezes sua companheira nas visitas aos parentes e amigos.
Maria
sem temor, Maria severa, Maria que ninguém se atrevia a atrapalhar sua conversa
porque ela botava menino na linha e dizia para não atrapalhar conversas de adultos.
Logo punha para correr. Por respeito ou por medo ninguém a desafiava. Sua idade
ninguém pensasse em perguntar porque a resposta vinha com a carga da sua
educação: “Sou do tempo em que era falta de educação perguntar a idade dos
outros!” E assim Maria foi vivendo e vencendo as barreiras que a vida lhe apresentava.
Sempre
tive muita admiração por esta mulher à frente do seu tempo. Pobre, simples,
humilde, que não abaixava a cabeça porque era mulher. Enfrentou os sabores e
dissabores que lhe presenteou a vida com uma capacidade de uma determinada
guerreira. Não houve doença que a deixasse deitada. Somente a velhice a
desafia, cega já não pode viver por si. Idosa e sem condições de viver por si é
levada para morar junto à família da Cotinha, sua prima paciência em forma de
mulher. Esta prima que a acolheu e deu
todo apoio por muitos anos até o fim de sua vida aos noventa e cinco anos como
se fora a sua verdadeira e única família.
A
prima Cotinha, mulher fantástica e caridosa não desprezou a Maria, foi
companheira leal a acolhendo em sua residência e cuidando para que a ela nada
faltasse. A vida destas duas mulheres daria um livro.
Tantas
vezes me vejo pensando na vida da mulher do século XIX, na rigidez da cultura,
onde a mulher é o sexo frágil, delicado como se fosse um cristal. Vejo Maria
com sua atitude de quem a ninguém teme. Só, ela vive sem depender do sexo forte
para nada. Da lenha para cozinhar às viagens que fazia a pé ou a cavalo porque
com ou sem companhia não deixava de cumprir suas promessa e visitas projetadas.
Era uma mulher pobre, vivendo da bondade dos outros, mas deles ela queria
apenas o cantinho para morar e plantar de resto ela se virava e nisso ela era
rica, tinha personalidade. Se fosse uma mulher do século XXI com todo esse
potencial seria uma grande mulher. Onde vivia a vida não lhe oferecia condições
para maiores empreendedorismos. Ela fez o que foi possível numa condição que só
ela conhecia. Morava só e só vivia com seu gato e suas rendas de cachaça e de linhas
tramadas em belos trabalhos na almofada de bilros e seus espinhos de mandacaru.
Vida dura, sem lamentos. Caminhou o quanto pôde. Viveu numa casa velha de taipa
dividida ao meio por ser grande para uma pessoa só. Não carecia de tanto. Tempos
depois ganhou uma nova casa, em tamanho menor, também de taipa construída exclusivamente
para ela e nela viveu enquanto teve condições de sobrevivência devido a sua
teimosia. Quando já não mais podia fazer nada por conta da visão que lhe faltava,
levaram-na para a casa grande da prima Cotinha, onde foi bem tratada e bem
cuidada até o fim da vida aos noventa e cinco anos.
Às
vezes visualizo o caminho por onde tantas vezes passou e chego a vê-la com todo
o seu porte no seu lento caminhar porque ela nunca parecia ter pressa como a me
dizer é assim que a vida tem de ser.
Caminhando,
visitando a minha memória, refazendo minha história tenho a sensação de que é
nela que me inspiro muitas vezes para também ser uma mulher de fibra.
Artemísia
17/12/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário